IBSN: Blog Internet Número de série 303-406-587-9

terça-feira, 10 de novembro de 2015

PROFESSOR & PESQUISA (1)

FONTE: https://docs.google.com/document/pub?id=1wWA6-GUDJJP9f3b0EXzlDKgOKzMZPcDndUgFdGBwjA4


Pedro Demo (2009)
Como dizem Lankshear & Knobel, ao analisarem a proposta do professor como pesquisador, trata-se de uma “idéia fortemente contestada” (2004:3). De fato, não só no mundo latino, mas igualmente em parte do mundo nórdico, ser professor é dar aula, tudo e só isso. Professor como mediador da transmissão de conhecimento é o perfil predominante no mundo todo, ainda que tradições nórdicas apontem para outra direção. Um divisor de águas sempre foi a visão de vida acadêmica que está por trás. Para certa visão de universidade, não pode existir “universidade de ensino”, porque ensino é função derivada: quem não pesquisa, não tem o que ensinar. Segue que o fundamento da vida acadêmica é autoria, não ensino. Por isso, sugeri que “ser professor é cuidar que o aluno aprenda” (Demo, 2004), sendo aula apenas expediente secundário e supletivo. Na prática, porém, grande parte de nossos docentes na escola se sentiria perplexa se lhe colocássemos a exigência de autoria. Herdeiros da tradição instrucionista (“aprenderam” apenas escutando aula, de professores sem produção própria), internalizaram este procedimento escolar que faz coincidir aprendizagem com freqüência à aula. Mesmo em países como nos Estados Unidos, um dos próceres mais destacados da “sociedade de conhecimento” (Castells, 1997), o que caracteriza a função docente é dar aula, não importando autoria docente, e, por conseqüência, não importando autoria discente, valendo isso igualmente para a grande maioria das “universidades” (Duderstadt, 2003). No mundo latino é regra, com poucas exceções: jamais a pesquisa tomou o lugar principal da academia, muito embora existam programas, como no CNPq, de fomento à pesquisa entre docentes. É tamanha esta “fé” que faculdades isoladas e centros universitários, amparados por legislação arcaica, não têm compromisso com pesquisa; apenas com ensino. É ampla a convicção de que pesquisa começa no mestrado, sob o rótulo constante de que seria atividade “especial” (ou estranha), não comum. Retomo aqui o argumento que tenho explorado há mais de 20 anos em torno da vinculação necessária e proveitosa entre docência e pesquisa (Demo, 1996), desdobrando-o num contexto mais amplo e atualizado.

I. HÁ MENOS CONTROVÉRSIA DO QUE ATRASO

Embora toda proposta acadêmica seja, por sua natureza metodológica, discutível - não haveria como estabelecer proposições finais, a não ser sob o manto do dogmatismo ou fundamentalismo (Demo, 2008) -, é importante distinguir entre algo que seja discutível por conta de seus méritos acadêmicos, ou por falta deles. Por exemplo, tomando em conta a proposta de Popper (1959; 1967) da “falsificabilidade” das teorias (Demo, 1995), temos aí um caso. Primeiro, foi um susto na academia que um “positivista” sugerisse tal posição, afastando a expectativa de que seria viável “verificar” teorias. Elas podem apenas ser “corroboradas”, e provisoriamente, enquanto não forem contraditadas por casos concretos negativos. Segundo, isto não tornou esta proposta menos adequada metodologicamente falando. Ao contrário, embora muito pouco seguida na prática (positivistas e empiristas continuam abusando da indução sem peias) (Besson, 2005), é charme maior de Popper, instalando no edifício positivista uma discussão proveitosa e aberta. Seu argumento foi tipicamente de cunho lógico: todo conceito está plantado em pressupostos que não conseguimos elucidar até ao fim, também conceitos empíricos. Não há, pois, “evidência empírica”, a não ser interpretações empiricamente referenciadas[1].
No caso do docente pesquisador, a discussão encobre não apenas discordâncias sempre pertinentes a um tipo de formulação aberta, mas principalmente resistências de duas ordens mais contundentes: i) num lado, estão os que rejeitam a idéia, porque não sabem, não querem assumir o compromisso da pesquisa, que, ademais, daria ainda mais trabalho; ii) noutro, estão os que aproveitam da idéia apenas algumas fímbrias, em especial uma prática muito amadora de pesquisa. Apesar da contestação, Lankshear & Knobel (2004:4) observam três pontos de acordo: i) pesquisa docente não seria quantitativa, afastando, em geral, envolvimento com procedimentos metodológicos de mensuração e formalização da realidade; ii) a pesquisa docente volta-se para os próprios docentes e seus desafios, em especial sua prática escolar; iii) a pesquisa docente teria como propósito maior dois lances: aprimorar o senso profissional docente, à medida que a prática se baseie em produção de conhecimento crítico, e melhorar a qualidade docente como tal, em especial a aprendizagem dos alunos.
A perspectiva central seria a do aprimoramento profissional, levando-se em conta que pesquisa faculta conhecer melhor as condições da docência, em especial quando vinculada ao um estilo mais crítico de desconstrução e reconstrução da práxis docente. Não cabe ao docente encerrar-se em práticas repetitivas, prescritivas, baseadas em fórmulas prontas, bem como apenas cumprir normas curriculares expedidas por grupos técnicos. Uma segunda perspectiva apareceria no intuito de aprimorar o ensino, expectativa já mais que contestável no contexto atual, porque a noção mais correta seria “superar” a cultura do ensino, tendencialmente instrucionista. De fato, pesquisar para aprimorar o ensino soa como usar as tecnologias mais novas para enfeitar a mesma velha aula (Demo, 2009). A pesquisa, aqui, em vez de apresentar-se como desconstrução/reconstrução crítica, mantém-se confirmadora do status quo: saber mais para deixar ainda mais tudo como está.
No entanto, em especial Kincheloe (2003) fez esforço notável na direção de vincular a pesquisa com propósitos mais disruptivos, particularmente o de romper com o tecnicismo curricular e o cientificismo acadêmico. Por não serem ambos “democráticos”, subvertem a chance de uma escola democrática, comprometida com os marginalizados. Esta visão lembra lances da “pesquisa participante” (Demo, 2004) que busca, entre outras coisas, colocar conhecimento de qualidade ao alcance dos oprimidos. Uma linha interessante de argumentação é que, se a escola se comprometer com propósitos críticos e avaliativos da educação, não pode ser apenas executora de ordens externas. Ela mesma precisa fazer-se sujeito de causa própria. Na interpretação de Lankshear e Knobel, esta visão de Kincheloe, ao fomentar a cultura alternativa do docente pesquisador, facultaria ao docente: “i) começar a entender as implicações do poder dos padrões técnicos; ii) apreciar os benefícios da pesquisa, particularmente em relação a entender as forças que moldam educação e que caem fora da experiência imediata docente e sua percepção; iii) começar a entender em modos mais profundos e ricos o que sabem da experiência; iv) tornar-se mais cônscios de como podem contribuir para pesquisa educacional; iv) ser vistos como trabalhadores do conhecimento que reflexionam sobre suas necessidades profissionais e correntes entendimentos; v) tornar-se mais cônscios de quão complexo é o processo escolar e como pode ser entendido a partir dos contextos sociais, históricos, filosóficos, culturais, econômicos, políticos e psicológicos que o moldam; vi) pesquisar sua própria prática profissional; vii) explorar os processos de aprendizagem ocorrendo nas salas de aula e tentar interpretá-los; viii) analisar e contemplar o poder de cada idéia do outro; ix) constituir uma nova cultura da escola à maneira de um ‘think tank[2] formativo para os estudantes; x) reverter a tendência rumo à desqualificação (deskilling) de professores e à imbecilização dos estudantes” (2004:6).
Lankshear e Knobel (2004) oferecem, então, sua própria crítica à pesquisa docente como vem sendo entendida, em especial quanto aos três pontos de acordo. Primeiro, postam-se contra a exclusividade qualitativa da pesquisa docente, por mais que os argumentos possam ser pertinentes, como aqueles contra o cientificismo positivista e o tecnicismo de expertises impostas. Esta crítica é hoje amplamente aceita, já que dicotomia entre o quantitativo e o qualitativo não se sustenta (Demo, 2001). Sendo a natureza, não só a sociedade, feita de quantidades e qualidades (Prigogine & Stengers, 1991), pode-se acentuar umas ou ouras, mas não dicotomicamente, conforme o objeto eventual de pesquisa (Tashakkori & Teddlie, 1998; 2002. Creswell, 2002. LeCompte et alii, 1992. Turato, 2003). Na prática, verifica-se facilmente que a pesquisa quantitativa continua sendo a mais produtiva e acatada, apesar de todas as críticas que se lhe possam endereçar (Demo, 2006). Esta constatação não é “argumento” propriamente, porque não passa de “argumento de autoridade”, mas não se escapa de observar que esta ainda é a “autoridade” da pesquisa. Assim, em vez de apenas contestar a pesquisa quantitativa, os pesquisadores qualitativos fariam melhor em também aprender daquilo que tanto contestam.
Segundo, Lankshear e Knobel criticam que a pesquisa docente se encerre apenas na sala de aula ou nas coisas do docente. A busca sadia de autonomia do docente que gostaria de andar com pernas próprias não pode confundir-se com isolamento e agressividade (Demo, 2005) que, ademais, apenas prejudicariam ainda mais o espírito crítico. É certamente justo que o docente assuma suas condições de vida e trabalho como objeto preferencial de sua pesquisa, mas não único. Segundo Gee (2003), pessoas que formulam discursos multiculturais e multimodais seriam mais capazes de crítica e autocrítica, algo que se tem tornado mais claro em plataformas virtuais da web 2.0, em especial nos videogames (Demo, 2009): por conta da interatividade “igualitária” entre os participantes, o argumento de autoridade é evitado em nome da autoridade do argumento (Demo, 2005a). Discurso fechado é sempre conservador, porque, em vez de desconstruir/reconstruir outros discursos, os expele, para reinar sozinho e já sem autocrítica. Um exemplo constante: a recusa ainda comum das novas tecnologias no campo da aprendizagem escolar acaba mantendo o “ensino” como peça obsoleta. Ademais, a crítica à academia positivista e cientificista não pode levar a afastar-se pura e simplesmente da pesquisa tradicional.
Tendo colocado esses dois reparos, Lankshear e Knobel voltam-se para seu ponto central: pesquisa docente como aprimoramento profissional, no sentido mais comum desta acepção. Trata-se de estar bem informado, saber analisar com profundidade, testar teorias e seus resultados, conferir a dinâmica escolar. Dão como exemplo, entre outros, a questão do “fetiche do construtivismo” (2004:10): em vez de transformar esta idéia numa panacéia já vazia, seria de todo oportuno pesquisar o que ela poderia significar de pertinente. Exalta-se, então, o papel da teoria, entendida como esforço acadêmico de pinçar padrões, relações, princípios e regularidades associadas a situações, experiências e fenômenos... Teoria, como discurso científico (Demo, 1995; 2000), significa ordenar conceitualmente dinâmicas da realidade, em nome da formalização do método, produzindo uma “ordem do discurso” (Foucault, 2000). A realidade, sendo também complexa não linear (Demo, 2002), não é ordenada como o discurso. Metodologicamente falando, porém, a ciência se fia em discurso formalizado estritamente, de preferência mensurado, instituindo facilmente a “ditadura do método” (Morin, 1996; 2002). Teorias, como bem apontava Popper (1958), são artefatos interpretativos de processos mentais reconstrutivos, não expressão pura e simples da realidade formalizada. Teoria não é realidade. É apenas construção formalizada dela, para fins de manipulação científica metodicamente assegurada. Facilmente o rigor do método torna-se mais importante que a própria realidade. No entanto, qualquer crítica à teoria serve apenas para a depurar de ranços positivistas ou do teoricismo tecnicista, não para a desfazer. Todo docente precisa saber lidar com teoria, no sentido de apoio instrumental para sua prática. Por exemplo, todo alfabetizador precisa de teoria da alfabetização, cujo sentido não está nela mesma, mas na alfabetização bem sucedida da criança. Por isso, toda teoria precisa ser “crítica”, em especial para não perder de vista a “autocrítica”. Teoria não é referência eterna, mas construção sempre em andamento, pois precisa manter-se aberta a aprender sempre.
Em seguida, Lankshear e Knobel contrapõem dois pilares mais conhecidos da pesquisa docente, Stenhouse e Berthoff, seguindo uma análise de Fishman e MacCarthy (2000). Stenhouse (1975; 1985) defendia “estudos rigorosos de caso para iluminar o ensino e aprendizagem em sala de aula”, com base em documentação detalhada e esmerada, produzindo dados bem feitos. A razão maior seria questionar o próprio ensino e desenvolver alternativas inspiradas em outros aportes teóricos, outras experiências, na desconstrução da própria prática, na montagem de habilidades críticas e criativas. Embora afunilada sobre “estudos de caso”, a noção de Stenhouse alinhava-se parcialmente à expectativa acadêmica da pesquisa dominante. Já Berthoff (1987) sugeria uma noção de “re-search” (re-busca)[3], aproveitando toda experiência vigente para, reconstruindo-a, inscrevê-la em conhecimento (writing already-existing experience into knowledge) (Lankshear & Knobel, 2004:13). Via teoria como relação dialética com a prática, podendo auxiliar a avaliar o que está ocorrendo e explicar algo que funciona; ou podendo ajudar a perceber por que algo funciona e como poderia ser aprimorado; ou podendo ajudar no pragmatismo crítico (por exemplo, teoria da alfabetização precisa eclodir em alfabetização prática da criança exitosamente), sem receitas prontas. Em certa medida, a proposta de Berthoff incidiria no que hoje se diz “reconstrução da práxis”, tendo como finalidade precípua, quando se submetem as práticas ao crivo da teoria crítica, des/refazer as rotinas.
Comparando as duas visões, nota-se que há algo em comum, por exemplo, o antagonismo profundo às concepções tradicionais de práticas de pesquisa canônica, em especial a procedimentos quantitativos e cientificistas. Insiste-se que pesquisa docente precisa girar em torno de “teachers’ questions” (questões próprias do professor). Há pelo menos duas diferenças entre eles: Berthoff não aprecia o tipo de dados (estudo de caso) proposto por Stenhouse; este, embora critique a academia engessada, quer sua qualidade na pesquisa, enquanto Berthoff afasta-se disso peremptoriamente. Lankshear e Knobel lamentam que tais disputas se mantenham, causando estragos e confrontos incomunicáveis entre os professores. “Ultimamente, a divisão fundamental dentro das fileiras de docente pesquisador está entre aqueles que continuam a insistir na importância da teoria, análise e rigor que são, mesmo assim, apropriadamente concebidos e balanceados para servirem às necessidades e interesses dos que a praticam, ao invés de inflar regimes acadêmicos de verdade, e os que não querem isso” (2004:17). De um lado, estariam muitos que se bastam com pesquisa docente sem teoria, método, análise, quase como um ritual político de denúncia discursiva. Facilmente perde-se a qualidade da pesquisa, tornando-se discurso local, provinciano, além de desnecessariamente excitado. Ao final, a fuga da pesquisa mais séria deixa tudo como está, consagrando vezos escolares impróprios. Não basta coletar e colar dados, sem atentar para sua qualidade metodológica, até porque é possível perseguir os intentos da pesquisa docente sem lhe roubar a substância do que seria pesquisa. Dados e análises mal feitos comprometem tudo: i) torna-se pesquisa de segunda categoria, rebaixando ainda mais a pedagogia; ii) acaba consagrando práticas obsoletas, enfeitadas de pesquisa. De outro lado, estariam docentes que, sem perder de vista a politicidade da educação, e criticando o positivismo e o cientificismo, pretendem manter a qualidade da pesquisa, não só por compromisso metodológico, mas igualmente por compromisso com mudanças realizadas com conhecimento de causa.
Lankshear e Knobel ecoam esta segunda posição, oferecendo um tratado denso e bem conduzido de como fazer pesquisa docente, mesclando aportes quantitativos e qualitativos, sem perder a politicidade. Começam por realçar a necessidade do discurso sistemático, desde o projeto de pesquisa: bem definido, com hipótese clara e circunscrita, com teoria ao mesmo tempo aberta e formalizada, com dados bem feitos, de tal forma que análises e interpretações podem decorrer sem perda de cientificidade. Não se pode fugir a procedimentos de formalização metodológica, porque são próprios do método científico que avança por ordenamento discursivo. Mas pode-se evitar formalizações rígidas, em especial a ditadura do método. Dinâmicas qualitativas, como “aprendizagem”, podem ser formalizadas, até porque toda qualidade humana também é quantidade (Demo, 2009a). É preciso não forçar dinâmicas intensas em formalizações estreitas que acabam com a própria intensidade delas. No entanto, é primarismo imaginar que toda quantificação só pode ser mal-intencionada e mal feita[4].


II. PESQUISA DOCENTE: Introduzindo a ideia

Retornando à noção de que há menos controvérsia do que atraso, seria conveniente superar a expectativa comum de que pesquisa no docente seria algo estranho, incomum, forçado, inventado. De fato, observando a pedagogia como é comumente feita, pesquisar está fora de propósito, a começar pelos professores dos cursos: dificilmente alguém pesquisa para poder dar aula. Aula se dá sem qualquer pesquisa, porque está completamente desvinculada da produção de conhecimento. Aula é, em seu âmago, procedimento disciplinar, tal qual é vista nas “didáticas”: centrada no professor e sua autoridade, cumpre ao aluno escutar, acatar, tomar nota e devolver na prova (Demo, 2004b). Mantém-se ainda, por incrível que possa parecer, algo da visão de Kant: “Enviam-se em primeiro lugar as crianças à escola não com a intenção de que elas lá aprendam algo, mas com o fim de que elas se habituem a permanecer tranqüilamente sentadas e a observar pontualmente o que se lhes ordena, uma vez que a falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina” (Veiga-Neto, 2001:9). É perturbador que uma figura como Kant assim pensasse. Mais perturbador é averiguar que esta atitude ainda é comum em sala de aula.
A invenção mais recente da pedagogia centrada no aluno tem, em parte pelo menos, esta finalidade, reforçada hoje ostensivamente nas plataformas da web 2.0 (Mason & Rennie, 2008), não, porém, por amor à arte, mas ao mercado (Fabos, 2004). Mesmo assim, é notório que tais plataformas facultam interatividade ampla que favorecem a autoria (Tapscott, 2009. Kilian, 2007). A lógica de que o “cliente sempre tem razão” não pode ser transportada para educação, porque, neste espaço não cabe a competitividade, mas oportunidades de aprender bem e estas possuem também qualidades técnicas próprias da formação especializada. Embora seja sempre o caso respeitar o aluno, partir dele, motivá-lo sob todos os ângulos, não cabe colocar em votação se matemática continua no currículo, não só porque seria rapidamente retirada, mas principalmente porque saber pensar implica fluência matemática também, por mais que seja, para muitos, algo penoso. Chama a atenção que a discussão sobre pesquisa docente, em geral, não é um assunto “centrado no aluno”: ele fica de fora, como se pesquisa não lhe coubesse. Aí já se vê o quanto pesquisa é mantida como lide especial, ou mesmo superior. Nas plataformas virtuais já temos o vezo contrário: qualquer coisa virou pesquisa, inclusive plagiar na internet.
Referência hoje fundamental é a da AUTORIAninguém se torna autor sem ser pesquisador. Qualquer olhar mais profundo na aprendizagem vai descobrir facilmente que um de seus horizontes mais promissores é o da autoria, como, por exemplo, decorre da “autopoiese” (Maturana, 2001. Demo, 2002), ou do “construtivismo” (Becker, 2001; 2003), ou do sócio-interacionismo (Vygotsky, 1989; 1989a). Deveria decorrer também das pedagogias críticas (Darder et alii, 2009), já que toda crítica, para ser coerente minimamente, precisa ser feita na posição de sujeito que contrapropõe, não apenas repete (Demo, 2009b). Primeiro, é quase um espanto que docentes não sejam autores (Demo, 2008a), ainda que fosse condição mais que “normal”. Se basta dar aula, para que ser autor? Esta pergunta não se coloca apenas na escola. Vale também para a universidade quase toda, em especial para a pedagogia: grande parte dos professores dá aula sem pesquisar, ou seja, sem autoria. O disparate é esse: aula sem autoria. Segue, logicamente, aluno sem autoria. Neste sentido, frente ao desafio da pesquisa há bem mais atraso do que controvérsia.

Ninguém se torna autor sem ser pesquisador

Segundo, assoma a cultura da reprodução acadêmica e escolar, começando por instituições universitárias que apenas “ensinam”. O instrucionismo é a regra, de onde surge o espanto, quando se questionam docentes que dão aula sem autoria. O professor é cunhado como reprodutor instrucionista, fiando-se na aula. Não faz o menor sentido introduzir pesquisa para aprimorar aula, porque seria enfeitar defunto. “Ensino” não há que ser aprimorado. Há que ser substituído por “aprendizagem” e centrada no aluno. Porquanto, “ser professor é cuidar que o aluno aprenda” (Demo, 2004) e isto não se faz sem autoria. Terceiro, esta aposta na autoria não pode obscurecer a discussão atual sobre suas condições hermenêuticas e tecnológicas, amplamente contestadas (Lessig, 2004. Lankshear & Knobel, 2008). Não cremos mais em autores puros, soberanos, isoladamente criativos, porque, sendo todos nós reconstruções da natureza, não existem “idéias totalmente originais”, assim como nossa mente não é propriamente original. É original no sentido subjetivo, individual, mas é elo de uma corrente que tem precedentes e conseqüentes. Esta crítica tornou-se mais clara na internet, onde predomina o “remix” (reconstrução de conteúdos já existentes) (Weinberger, 2007. Erstad, 2008) e que precisa ser distinguido do plágio. Na prática, a autoria mais comum é a “reconstrutiva”, ou seja, aquela que, partindo de conteúdos vigentes, os refaz com mão própria. No fundo, porém, não há autoria que faça mais que isso, mesmo nos gênios (Sawyer, 2007).
Ao lado da autoria, argumento soberbo é o da APRENDIZAGEMnão se aprende sem pesquisar. Bastaria observar as teorias que entendem a mente humana como máquina reconstrutiva (autopoiética), não reprodutiva. Do ponto de vista do observador, como diz Maturana (2001), não vemos a realidade como ela é, mas como a reconstruímos mentalmente, formando dela uma idéia da qual somos sujeito, não porta-vozes. A visão dita “construtivista” também aposta nisso, tornando a dinâmica da aprendizagem uma condição participativa reconstrutiva. Para aplicar pesquisa à aprendizagem da criança supõe-se, naturalmente, que se burile o conceito e a prática de pesquisa adequadamente. Prevalece aí a intenção pedagógica (pesquisa como princípio educativo), sem prejuízo da pesquisa como princípio científico, ainda que não necessariamente academicista. A criança não domina linguagem acadêmica (Lankshear & Knobel, 2008), razão pela qual seria impróprio esperar dela pesquisa canônica. Mas manifesta o espírito similar de pesquisa, quando, como alega Piaget (1973) em sua psicologia genética (Freitag, 1997), a criança em contato com a realidade vai refazendo suas “hipóteses” de como ela funciona, através de estágios que equilibram e desequilibram seu modo de a construir. Apesar da possível rigidez dos estágios piagetianos, a própria noção de “equilibração” indica condição de abertura constante a novas hipóteses, à medida que a criança avança em suas construções mentais.

Não se aprende sem pesquisar

Pode-se concluir: autoria e aprendizagem supõem pesquisa. No entanto, o desafio maior não é que o aluno pesquise. É que o professor pesquise. Daí a importância decisiva da “pesquisa docente” (Demo, 2008a). Autores como Lankshear e Knobel (2004) realçam procedimentos sistemáticos da pesquisa, com o objetivo de garantir sua qualidade acadêmica, movidos também pelos abusos da pesquisa qualitativa. Não percebem, porém, de maneira adequada que esta idéia precisa chegar ao aluno, a seu modo e sem banalizar pesquisa. Fixando-se no aprimoramento profissional dos docentes - algo em si importante, certamente - perde-se de vista a importância pedagógica da pesquisa, focando-a quase que exclusivamente como modo de produzir conhecimento. Não se pode prejudicar esta face. Mas pesquisa é dinâmica bem mais ampla e que faz parte da boa formação.

CONCLUINDO

Pesquisa é tão importante para o professor e para o aluno, que não se pode colocar como algo ligeiro ou incomum. Exige esmero de análise e definição, seja para evitar dizer que qualquer coisa é pesquisa, ou que pesquisa é algo do outro mundo, inatingível para os mortais. Esta visão implica, naturalmente, uma revisão profunda do perfil docente, bem como de sua formação original, hoje empapada em instrucionismo voraz. Aluno aprende bem com professor que aprende bem (Demo, 2009c) e para tanto saber pesquisar é uma das garantias mais eficazes, ainda que não automática. Embora pesquisa coloque sobre os ombros docentes ainda mais responsabilidades, no fundo é maneira densa de valorizar os professores, no sentido de que tenham oportunidades efetivas de aprender bem, tornarem-se autores, realizarem espírito crítico e autocrítico de qualidade.
Na terra da “apostila”, que, mesmo freqüentemente bem feita, é “fórmula pronta” para ser bengala de professor instrucionista, pesquisa parece algo estranho ou exigência fora de lugar. A falta de vinculação com pesquisa desvela que não temos noção minimamente adequada com estudo (Demo, 2008b): não sabemos, nem gostamos de estudar. Precisamos urgentemente inventar isso.

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[1] Esta visão metodológica é chamada em lógica de “modus tollens” (modo que nega), porque teorias podem apenas ser falsificadas, não verificadas. A coleta de todos os casos empíricos subsumidos pela teoria é impraticável (regressão ao infinito), mas basta um caso negativo para falsificar (pelo menos em parte) a teoria (Demo, 1995).
[2] Literalmente, “tanque de pensamento”: um laboratório de pensamento movido por crítica e pesquisa.
[3] Berthoff aproveita um trocadilho: research (pesquisa) é uma palavra composta de “re” e “search” (busca): donde segue pesquisa como “re-busca”.

[4] Vale lembrar a posição de Adorno (Teoria Crítica): “minha opinião própria na controvérsia entre sociologia empírica e teórica... poderia ser sumariada dizendo que as pesquisas empíricas não são apenas legítimas, mas essenciais, mesmo no âmbito de fenômenos culturais; mas não se deve conferir autonomia a elas ou vê-las como chave universal; acima de tudo, precisam concluir seu labor teórico, já que teoria não é mero veículo que se torna supérfluo, logo que os dados estiverem disponíveis” (apud Giroux, 2009:35).